Rafael Thomazi

Especialista em Geriatria pela SBGG/AMB; doutorando em Fisiopatologia em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP); responsável pela enfermaria de Geriatria do Hospital das Clínicas de Botucatu

Em tempos de pandemia muitas informações são disseminadas de forma acelerada. Os meios de comunicação e de mídias sociais nunca tiveram um papel tão relevante no contexto em que estamos vivendo, tanto para o bem, através de educação e conscientização; quanto para o mal, através das chamadas “fake news”, levando ao sensacionalismo e incentivando o descaso. Nunca houve, em tão pouco tempo, tantas pessoas “entendedoras” dos problemas de saúde do país. Interesses políticos infiltrados nas questões sanitárias dão mais uma amostra do problema complexo com que estamos lidando.
Esse texto não se propõe debater sobre as pesquisas de medicamentos para tratamento da COVID-19 (o que já está sendo divulgado de forma cansativa e, muitas vezes, distorcida), nem tampouco a falta de recursos humanos e estruturais do país no enfrentamento da doença. Não trataremos de política, nem faremos críticas aos posicionamentos das entidades e sociedades de saúde, da mídia e do comportamento das pessoas. A ideia do texto é tentar mostrar o que a prática da geriatria e da gerontologia podem nos ensinar em tempo de pandemia.
Vamos começar lembrando que os idosos fazem parte do grupo de risco de gravidade da COVID-19. Frequentemente apresentam doenças crônicas como diabetes, acometimento cardiovascular, pulmonar, renal, neurológico, entre outros. Durante a fisiologia do envelhecimento há alteração do sistema imunológico, levando à predisposição de quadros infecciosos e de algumas condições autoimunes. A avaliação geriátrica ampla ajuda e muito na caracterização dos pacientes idosos, tentando de forma individualizada compreender as demandas e contribuir para o delineamento de possíveis intervenções a serem realizadas em cada indivíduo. Essas demandas vão desde questões envolvendo compensação de comorbidades, medidas preventivas e de diagnóstico, redução de polifarmácia até questões envolvendo aspectos funcionais, risco e identificação de fragilidade, problemas sociais e plano de cuidados.
Em época de pandemia, mais do que nunca, torna-se fundamental realizar de forma sistemática um plano de cuidados para cada paciente idoso. E como devemos fazer isso? Primeiramente precisamos conhecer o paciente em questão, ouvindo sua história de vida e seus valores. O paciente precisa ser esclarecido em relação a seus próprios cuidados sempre que possível, entender suas comorbidades, as possibilidades de tratamento e seu prognóstico. Quando não há essa possibilidade, então conversamos e planejamos cuidados discutindo essas questões com familiares ou seu representante legal. Na situação atual, a presença de um planejamento antecipado de cuidados, estabelecido mediante a ausculta ativa das suas preferências, respeitando sua trajetória de vida e seus valores, pode ajudar e muito a equipe de saúde na tomada de decisão durante situações de urgência, reduzindo o risco de ocorrência de possíveis iatrogenias. Esse processo de tomada de decisão envolve não apenas a perspectiva dos profissionais de saúde durante a avaliação do paciente, mas também a condição e quantidade de recursos da instituição de saúde na qual os profissionais estão inseridos.
Decidir quanto ao uso ou não de um recurso de saúde baseado apenas na idade do paciente pode ser uma decisão arriscada e precipitada, podendo até mesmo levar a um ato de mistanásia, ou seja, deixar de utilizar um recurso de saúde que traria benefício ao indivíduo. Durante a atual pandemia, acompanhamos histórias fantásticas de idosos se recuperando, que foram submetidos a procedimentos invasivos, tempos prolongados de isolamento e hospitalização. Trata-se de uma demonstração pungente da heterogeneidade dos pacientes geriátricos, cada um apresentando uma particularidade e uma história de vida. Considerar essas questões, sempre associando à avaliação geriátrica ampla, nos ajuda a compreender por que muitos idosos nos surpreendem positivamente e se recuperam durante o processo de adoecimento e internação hospitalar. A programação para reabilitação do idoso após melhora de um quadro grave de saúde é fundamental. Atentar para aspectos nutricionais, atualizar calendário vacinal, orientar medidas para prevenir quedas, adequar o ambiente do paciente, orientando a família e o cuidador, inserir cuidados de equipe multiprofissional sempre que possível, estimulando mudança de estilo de vida, adequar uso de medicamentos, realizando desprescrição de medicamentos potencialmente inapropriados são aspectos fundamentais dentro da prática geriátrica. Vale sempre lembrar que, na geriatria e gerontologia, uma alta hospitalar é sempre uma oportunidade de realizar planejamento de cuidados, inserindo o paciente e sua família como membros ativos e centrais no contexto do cuidado de saúde.
Por outro lado, submeter sistematicamente todos os pacientes idosos com COVID-19 grave a suporte avançado de vida, procedendo intubação orotraqueal e ventilação mecânica, pode levar pacientes com prognóstico desfavorável a um processo de distanásia, ou seja, realizar medidas fúteis que irão prolongar o sofrimento do ser humano sem trazer benefício terapêutico e recuperação, podendo levar até a uma escassez de recursos terapêuticos de forma mais rápida para aqueles que realmente se beneficiariam de tais recursos.
A prática de cuidados paliativos, pouco explorada de forma geral no contexto da pandemia, deveria receber mais atenção, já que independentemente do prognóstico do paciente, o alívio do sofrimento humano deveria estar presente em todas as situações de cuidado de saúde. Aliviar dispneia, sialorreia, ansiedade, dor, entre outros sintomas, deveriam ser medidas obrigatórias no contexto da COVID-19 e se tornar uma discussão tão importante quanto a aquisição de equipamentos de ventilação mecânica e ampliação de leitos de UTI. É essencial que aqueles pacientes que não consigam se recuperar da COVID-19 ou de qualquer outra doença grave e ameaçadora a vida recebam um fim de vida digno, com amplo acesso a medidas de alívio de sofrimento por meio da prática de cuidados paliativos; que todos os familiares sejam comunicados e amparados de forma clara e empática sobre a evolução clínica de seus entes queridos; que se usem os recursos tecnológicos existentes e todas as medidas de proteção individual possíveis para mitigar o isolamento durante processo de despedida. Na geriatria e gerontologia em época de pandemia, mais do que nunca tornam-se fundamentais o trabalho de equipe interdisciplinar e a presença de habilidades de comunicação efetiva e empática, associada à prática de empatia.
Já passou da hora de a geriatria e a gerontologia, bem como seu irmão, os cuidados paliativos, ganharem mais importância no ensino superior e nos cursos da área da saúde. A população está envelhecendo, as doenças crônicas são cada vez mais prevalentes e a necessidade de profissionais capacitados no cuidado geriátrico cresce cada vez mais.
A questão dos pacientes institucionalizados representa um problema muito grave no contexto do novo coronavírus. A maioria desses pacientes demandam mais cuidados de saúde, apresentam maior dependência funcional, maior prevalência de síndrome de fragilidade e de doenças neurodegenerativas e, infelizmente, apenas a minoria desses pacientes apresenta algum planejamento antecipado de cuidado estabelecido, sendo um grande desafio estabelecer condutas quando tais idosos chegam aos serviços de urgência e emergência.
Nesses dias de pandemia, a prática geriátrica nos ensina a importância de individualizar condutas baseadas na avaliação geriátrica ampla e na realização de planejamento de cuidados a partir das perspectivas e valores do paciente, da equipe de saúde e dos recursos disponíveis nas instituições de saúde. Ela traz à tona a necessidade de se praticar empatia e aperfeiçoar estratégias de comunicação, inserindo os cuidados paliativos no contexto de atendimento da pandemia, valorizando o trabalho em equipe interdisciplinar. Indivíduos idosos são heterogêneos, portanto não podemos basear condutas com base apenas na idade do indivíduo, sem levar em conta suas particularidades e possibilidades de reabilitação. A ideia do ageísmo, presente em nossa sociedade, deve ser combatida paralelamente a essa pandemia e um possível “antídoto” para ele é o ensino e prática da geriatria e gerontologia, a disseminação do conhecimento à população e treinamento dos profissionais da área da saúde no cuidado e nas particularidades que envolvem os indivíduos idosos.

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