Artigo publicado no The Lancet Global Health aborda os desafios da longevidade e, em particular, de um problema grave e pouco discutido que é o abuso contra idosos. A seguir, a tradução do artigo e, na sequência, uma análise das geriatras Maria Cristina Passarelli, médica assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, professora de Clínica Médica da Faculdade de Medicina do ABC e vice-presidente da SBGG-SP, e Cristiane Comelato, médica do Serviço de Geriatra do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e diretora de Comunicação e Ação Social da SBGG-SP.
Artigo – Protegendo o dividendo global da longevidade
Um dos progressos pouco anunciados na saúde global nos últimos anos é o bem-vindo aumento no número de idosos (com 60-65 anos ou mais) em países de baixa e média renda. No entanto, junto aos ganhos obtidos com este dividendo da longevidade, aparecem desafios específicos aos serviços de saúde. Esses desafios surgem do aumento da variabilidade interindividual e da complexidade da apresentação das condições de saúde, para as quais os serviços geriátricos especializados têm procurado fornecer respostas eficazes1.
Mesmo nos países desenvolvidos, os problemas do envelhecimento e da tolerância indevida ao “analfabetismo gerontológico” dificultam a prestação de serviços adaptada à terceira idade. Essas questões são de particular relevância para o estudo sistemático2 sobre o abuso contra idosos por Yongjie Yon e seus colegas no periódico “The Lancet Global Health”. Apesar da crescente conscientização do problema desde a primeira descrição de abuso de idosos na literatura biomédica há mais de 40 anos3, o desenvolvimento de pesquisa e a prestação de serviço ficam atrás do abuso infantil e da violência doméstica.4
Um dos problemas é a escassez de estimativas confiáveis sobre abuso de idosos para sustentar políticas, procedimentos e diretrizes. Vários ensinamentos emergiram dessa meta-análise cuidadosamente executada.2 O primeiro é que o abuso de idosos é mais comum do que se suspeitava anteriormente, afetando um em cada seis adultos mais velhos.
Em contraste com resultados anteriores, que enfatizavam a violência física3, as formas mais comuns de abuso de idosos são psicológica e financeira, seguidas a certa distância por abuso físico e sexual. Esse dado é relevante para o planejamento de estratégias eficazes de prevenção, além da identificação e manejo desse problema angustiante e comum.5
Da perspectiva da saúde global, um dos aspectos mais preocupantes da pesquisa de Yon e colegas é a escassez de estudos advindos de países de baixa e média renda. Quase dois terços das pessoas idosas vivem nessas regiões e a ausência de foco nessa questão-chave reflete uma grande negligência na experiência gerontológica e geriátrica em seus sistemas de saúde6, bem como na saúde global.7 Esse vazio de pesquisa é lamentável não só para as populações envolvidas, mas também em termos da perda de um possível intercâmbio de conhecimentos valiosos para o cuidado e a proteção decorrentes das experiências de diferentes culturas e estruturas sociais.
Uma questão pendente é a extensão em que o abuso de idosos ocorre em instituições de longa permanência, um cenário que é sub-pesquisado. Há a preocupação de que o abuso ocorra mais frequentemente nesses locais e em padrões diferentes do que na comunidade.
A magnitude do problema deveria levar a uma urgência na investigação das formas mais eficazes de prevenção e tratamento do abuso de idosos, que devem ser alimentados com estudos de grande porte e de boa qualidade10. O abuso de idosos é uma área desafiadora de prática e pesquisa, e precisa de uma abordagem multissetorial coordenada, unindo a experiência de clínicos de várias disciplinas11. O abuso financeiro dos idosos é uma área particularmente problemática para os clínicos. Embora programas de formação para os que trabalham nos setores bancário e financeiro podem ajudar na prevenção, não existem programas eficazes para os clínicos. Detectar esse problema pode ser desafiador, ainda mais porque as normas culturais do que pode ser considerado uma transferência intergeracional normativa pode variar dentro de cada país, bem como entre países.
Os idosos são uma parte vital de nossa sociedade, uma parcela demográfica cada vez mais presente em partes do globo onde, até recentemente, a expectativa de vida era baixa. A pouca atenção dada ao estudo dessa grande ameaça à saúde e ao bem-estar desses indivíduos em países de baixa e média renda deveria funcionar como um catalisador para que a comunidade mundial da saúde examine até que ponto o setor é “ageist” (preconceituoso contra idosos) e necessita rever atitudes em relação às necessidades de saúde e sociais mais complexas decorrentes da melhoria da saúde e da longevidade nesses países. Menos de 1% dos estudos no MEDLINE relacionam a saúde global com o envelhecimento, e apenas um em cada 20 desses estudos relaciona-se ao abuso de idosos.
O foco combinado da comunidade de saúde global teve um grande impacto sobre as doenças transmissíveis ao longo de muitas décadas, principalmente em relação ao HIV. Embora se tenha notado uma mudança para uma maior ênfase nas doenças não-transmissíveis, a pesquisa coletiva e o engajamento das ciências gerontológicas têm sido claramente fundamentais para a promoção e o progresso no combate ao abuso de idosos.
Consequentemente, uma melhora das respostas globais aos problemas emergentes, tais como o abuso dos mais velhos, irá requerer a colaboração entre a saúde global e a gerontologia. Esta colaboração deveria, por sua vez, conduzir a uma reflexão sobre o grau de equidade com que a ONU e a OMS dedicam os seus recursos e, em particular, até que ponto isto reflete as necessidades muitas vezes complexas do número crescente de idosos. Meta-análises cuidadosas, como a apresentada no The Lancet Global Health2, reforça que uma nova meta para a saúde global é manter e proteger o dividendo de longevidade global.
1. Ellis, G, Whitehead, MA, O’Neill, D, Langhorne, P, and Robinson, D.Comprehensive geriatric assessment for older adults admitted to hospital. Cochrane Database Syst Rev. 2011; 7 (CD006211)
2. Yon, Y, Mikton, CR, Gassoumis, ZD, and Wilber, KH.Elder abuse prevalence in community settings: a systematic review and meta-analysis. Lancet Glob Health. 2017; 5: e147–e15
3. Burston, GR.Granny-battering. BMJ. 1975; 3: 592
4. Wolfe, DA.Elder abuse intervention: lessons from child abuse and domestic violence initiatives. in: RJ Bonnie, RB Wallace (Eds.) Elder mistreatment: abuse, neglect, and exploitation in an aging America. National Research Council, Washington; 2002: 501–525
5. O’Dwyer, C and O’Neill, D.Developing strategies for the prevention, detection and management of elder abuse: the Irish experience. J Elder Abuse Negl. 2008; 20: 169–180
6. Tam, WJ and Yap, P.Health care for older adults in Uganda: lessons for the developing world. J Am Geriatr Soc. 2016; (published online Oct 22.)DOI:10.1111/jgs.1456.
7. Esser, DE and Ward, PS.Ageing as a global public health challenge: from complexity reduction to aid effectiveness. Glob Public Health. 2013; 8: 745–768
8. Lloyd-Sherlock, P.Social policy and population ageing: challenges for north and south. Int J Epidemiol. 2002; 31: 754–757
9. Castle, N, Ferguson-Rome, JC, and Teresi, JA.Elder abuse in residential long-term care: an update to the 2003 National Research Council report. J Appl Gerontol. 2015; 34: 407–443
10. Baker, PR, Francis, DP, Mohd Hairi, NN, Othman, S, and Choo, WY.Interventions for preventing elder abuse: applying findings of a new Cochrane review. Age Ageing. 2016; (published online Oct 13.)DOI:10.1093/ageing/afw186.
11. Du Mont, J, Kosa, D, Macdonald, S, Elliot, S, and Yaffe, M.Determining possible professionals and respective roles and responsibilities for a model comprehensive elder abuse intervention: a Delphi consensus survey. PLoS One. 2015; 10: e0140760
Veja o artigo original aqui.
Análise – Maria Cristina Passarelli, geriatra, médica assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, professora de Clínica Médica da Faculdade de Medicina do ABC e vice-presidente da SBGG-SP
Os achados descritos na revisão sistemática sobre prevalência de abuso em idosos publicada no Lancet neste ano devem chamar a atenção de todos os envolvidos – geriatras, gerontólogos, autoridades públicas e os próprios idosos – para a magnitude desse problema. Segundo a ONU, abuso de idosos “é um ato simples ou repetido, ou ausência de ação apropriada, que ocorre no contexto de qualquer relacionamento em que exista uma expectativa de confiança, que causa dano ou tensão a uma pessoa idosa”. Esse abuso pode ocorrer de várias maneiras, como as citadas no artigo, que descreve como tipos mais comuns o abuso psicológico e financeiro, mencionando também o abuso físico e sexual; cabe, no entanto, lembrar ainda da negligência, definida como recusa, omissão ou falha no cuidado ao idoso.
Em 2001, o Brasil participou de um estudo multicêntrico, coordenado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Inpea, sobre a percepção que idosos e profissionais de saúde tem sobre a questão da violência, concluindo-se que as formas mais relatadas de maus-tratos foram a negligência e o abandono.
Em sua tese de doutorado, orientada por Naira Dutra Lemos e publicada em 2010, Zally Vasconcellos Queiroz avaliou quarenta cuidadores familiares primários de idosos atendidos pelo Programa de Assistência Domiciliar ao Idoso da Disciplina de Geriatria e Gerontologia da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP, observando que cuidadores que prestavam assistência a idosos totalmente dependentes mostraram níveis maiores de tensão e isolamento quando comparados àqueles que cuidavam de idosos parcialmente dependentes; tais características têm sido citadas na literatura como potencialmente associadas à negligência e à violência doméstica, concluindo-se, portanto, que caberia uma atenção diferenciada por parte dos Serviços de Saúde em relação a pacientes e cuidadores portadores desse tipo de perfil. Membros de equipes multidisciplinares de Programas de Assistência Domiciliar, ou mesmo agentes comunitários de saúde, que muitas vezes são os primeiros a manter contato com os idosos dentro de seu ambientes familiar, poderiam identificar aqueles sob risco de violência e negligência, permitindo a elaboração de ações para coibir tais práticas.
Por outro lado, há determinados tipos de ambientes nos quais a constatação de abusos e negligência se reveste de uma complexidade maior, citando como principal exemplo as Instituições de Longa Permanência para Idosos, que abrigam populações infelizmente pouco estudadas nacional e internacionalmente. Em inquérito realizado entre profissionais de 32 ILPIs de um estado americano, 36% dos entrevistados admitiram já ter presenciado pelo menos um incidente de violência física durante o ano precedente, ao passo que 70% referiram ter testemunhado algum profissional gritando com os pacientes; em 13% dos inquéritos houve ainda relato de ter sido negado alimento aos pacientes. Vieira e colaboradores avaliaram uma população de 102 idosos em uma ILPI no Ceará, observando que as principais queixas corresponderam a “maus-tratos físicos e verbais” e “abuso sexual e financeiro”. Ainda quanto à população institucionalizada, é importante lembrar que, infelizmente, a negligência pode ocorrer tanto por parte da equipe da ILPI quanto por parte dos próprios familiares, na medida em que o idoso pode ser pouco visitado ou até mesmo abandonado. É fundamental que se realize um número maior de trabalhos envolvendo essas populações, pois soluções efetivas só surgem após o estabelecimento de dados acurados.
Finalmente, é interessante comentar que, em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Rede Internacional de Prevenção à Violência da Pessoa Idosa instituiram o Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa, para o que foi escolhida a data 15 de junho. O objetivo da criação dessa data foi chamar a atenção para a existência real da violência contra a pessoa idosa e disseminar a ideia de jamais aceitá-la como normal. Conforme já descrito, a principal forma de violência praticada contra os idosos brasileiros nos últimos três anos foi a negligência, que, em 2014, representou 76,3% das denúncias recebidas pelo serviço Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Diante da gravidade dessa situação, é preciso que a sociedade como um todo se mobilize para a construção de um futuro mais solidário.
Referências bibliográficas:
1. Machado L, Queiroz ZPV. Negligência e maus-tratos em idosos. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Freitas EV, organizador, segunda edição, Rio de Janeiro (2009)
2. Paixão Júnior CM. Violência doméstica contra idosos. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia. Freitas EV, organizador, terceira edição, Rio de Janeiro (2011).
3. https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/index.php?m=pesquisa%2Fsimples&search_term1=QUEIROZ%2C+Zally+Pinto+Vasconcellos+de
4. Amadio Sanches AP, Lebrão ML, Duarte YA. Violência contra idosos: uma questão nova? Saude Soc São Paulo 17; 90-100, 2008.
5. Vieira LJ, Silveira EA, et al. A Interface da violência com a institucionalização do idoso. Rev APS 11 (4), 389-397, 2008.
6. Pillemer KA, Finkenlhor D. The prevalence of older abuse: a random sample survey. Gerontologist 1988; 28: 51-57.
Análise – Cristiane Comelato, geriatra e diretora de Comunicação e Ação Social da SBGG-SP
Nas últimas décadas, em razão do aumento da expectativa de vida em todo o mundo, inclusive nos países em desenvolvimento, a violência contra a pessoa idosa surge como um grave e preocupante problema de saúde pública, levando inclusive a um aumento da demanda para cuidados nos serviços de saúde. A violência contra a pessoa idosa ocorre em diferentes locais, podendo acontecer no ambiente familiar (maior parte dos casos), nas instituições de longa permanência para idosos, nas relações institucionais e nos espaços públicos e privados.
Dados e publicações sobre a violência no Brasil ainda são escassos, não unificados e pouco visualizados. As principais fontes de informações sobre maus-tratos e violência contra idosos são: a Secretaria de Segurança Pública e as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Fomentando as limitações para novos estudos, persiste uma gama de casos subnotificados, principalmente porque os idosos não denunciam as situações de maus-tratos e agressões sofridas por medo ou coerção. Soma-se a isso o déficit de detecção dos casos de violência pelos profissionais de saúde, que não estão formados e nem treinados para a investigação ativa e detecção precoce, passíveis de intervenção e prevenção de casos de abuso contra os mesmos.
Desde 2003, o Disque Direitos Humanos (Disque 100) é um serviço de utilidade pública da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) destinado a receber demandas relativas a violações de Direitos Humanos, especialmente de crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, população LGBT, em situação de rua, em privação de liberdade, comunidades tradicionais, entre outras que atingem populações em situação de vulnerabilidade. O serviço é coordenado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que tem a competência de receber, analisar e encaminhar manifestações de violações de direitos humanos.
A central de atendimento funciona 24 horas, todos os dias da semana, inclusive sábados, domingos e feriados. A ligação é gratuita, podendo ser realizada de qualquer terminal telefônico e atende ligações de todo o território nacional. As denúncias podem ser anônimas ou quando solicitadas pelo denunciante, é garantido o sigilo da fonte das informações. Elas são examinadas e posteriormente encaminhadas aos órgãos responsáveis para apuração e providências cabíveis, considerando as especificidades das vítimas apontadas na denúncia, bem como da vulnerabilidade acrescida, quando houver, associada ao grupo no qual pertence a vítima.
Esse canal registrou 18.641 denúncias de violência contra a pessoa idosa no ano de 2016. Os dados mostram que a maior parte das violações acontece dentro da casa das vítimas e são cometidas por filhos, netos ou outros familiares. Comparado a 2015, o número de denúncias diminuiu 42,18% (restante dos dados referentes a 2016 ainda estão em análise). Entre os estados que mais registraram ocorrências estão São Paulo (4.227), Rio de Janeiro (2.377), Minas Gerais (1.783), Rio Grande do Sul (1.223) e Bahia (1.005).
Em 2015, os abusos mais comuns foram violações por negligência (77,66%), violência psicológica (51,7%), abuso financeiro/econômico e violência patrimonial (38,9%) e violência física (26,46%), com discreto aumento nas violações relacionadas a negligência e abuso financeiro e econômico.
O perfil das vítimas por gênero revela que as mulheres são o maior grupo nas vítimas com registro de denúncias – 63%, contra 29% de idosos. As denúncias são bem distribuídas nas diversas faixas de idade acima de 60 anos, com maior incidência de 76 a 80 anos (19%) e menor incidência de 91 anos ou mais (5%). Em relação a raça/cor, brancos aparecem com 36%, enquanto negros e pardos representam 34%.
Em 2006, a ONU instituiu o dia 15 de Junho como o Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa. Esta data mostra que é preciso trabalhar intensamente em busca de divulgação e conscientização, com grande abrangência territorial, para se promover uma reflexão social, estimulando e orientando a população para mostrar como queremos e devemos ser tratados, com proteção, segurança, carinho e cuidados durante a velhice.
Como desafio, necessitamos de integração dos poderes públicos com a sociedade e especialistas na área de saúde para o desenvolvimento e colocação em prática de estratégias de ação e formas de prevenção de abusos. A promoção do desenvolvimento de uma sociedade que atenda todas as idades, a priorização dos direitos da pessoa idosa, o idoso visto como protagonista, a criação de espaços sociais com inserção social para os idosos, o apoio às famílias que abrigam idosos em seu lar, a prevenção de dependências e a formação de profissionais de saúde, e cuidadores profissionais, são algumas das ações. Algumas dessas estratégias já existem em maior ou menor grau, no entanto todas devem ser ampliadas.
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