Resumo do artigo: “Potentially inappropriate drug use among hospitalised old adults: results from the CRIME study” (Age and Ageing 2014; 43:767-773)
Gabriela de Oliveira Cristo
Residente de segundo ano do Serviço de Geriatria da Faculdade de Medicina da USP
As reações adversas a medicamentos (RAMs) em pacientes idosos constituem um importante problema médico de saúde, visto que resultam em 3 a 5% de todas as admissões hospitalares, levando a altos custos intra-hospitalares e a um aumento da morbidade e mortalidade. O uso de medicamentos potencialmente inapropriados para idosos (MPIs), definidos como aqueles em que os riscos superam os benefícios, é um dos principais fatores de risco para RAM e outros desfechos negativos em saúde. Os eventos adversos dos MPIs são especialmente relevantes em idosos internados, com frequência frágeis e portadores de doenças agudas, o que aumenta a suscetibilidade a RAMs e a gravidade das doenças.
Após a criação dos primeiros critérios para identificação de MPIs, proposto por Beers em 1991 e atualizados em 1997, 2003 e 2012, surgiram em 2008 os critérios STOPP (Screening Tool of Older People’s Prescriptions), visando também contemplar a prescrição de MPIs em idosos na Europa (conhecido como “Critérios de Beers europeus”), já que muitos dos medicamentos constantes da lista de Beers não são disponíveis na Europa. Entretanto, poucos estudos avaliaram a prevalência e o risco de desfechos negativos de saúde associados ao uso de MPIs pelos dois critérios em idosos.
Os objetivos este estudo foram: a) avaliar a prevalência de MPIs pelos critérios de Beers e STOPP; b) determinar o impacto do uso de MPIs nos desfechos RAM e funcionalidade em idosos internados.
Foi realizado um estudo observacional transversal em 7 hospitais italianos, em uma enfermaria geriátrica de pacientes agudos, cuja amostra foi coletada pelos dados do CRIME study (CRIteria to Assess Appropriate Medication Use among Elderly Complex Patients). Foram incluídos pacientes internados consecutivamente durante o período de junho de 2010 a maio de 2011 e excluídos os participantes < 65 anos e que não quiseram participar do estudo. Os dados foram obtidos através de questionários realizados na admissão e atualizados diariamente, considerando as medicações empregadas 7 dias antes da admissão e durante admissão, assim como o MEEM para avaliar função cognitiva dos participantes. Dos 65 medicamentos do STOPP, 57 foram incluídos. A mudança na funcionalidade também foi avaliada na admissão e na alta, sendo que 1 ponto na mudança das ABVDs indicou declínio funcional.
Da amostra total, 871 participantes foram incluídos, sendo a média de idade de 80,2 anos, a maioria do sexo feminino (53,2%); 4,7 foi o número médio de doenças, 10,6 o número médio de medicações usadas e 11,1 dias o tempo médio de internação. Um total de 218 (25%) da amostra não receberam MPIs, 215 (24,7%) receberam MPIs pelo critério de Beers somente, 144 (16,5%) somente pelo STOPP e 294 (33,8%) receberam MPIs pela combinação dos dois critérios. Independentemente do critério utilizado, a prevalência de RAM e o declínio da funcionalidade foram superiores nos paciente que utilizaram MPIs quando comparados aos que não utilizaram.
A presença de MPIs baseada pelo critério STOPP foi significativamente associada a RAM (OR 2,36 95% CI: 1,10-5,06) e a declínio funcional (OR 2,0 95% CI: 1,10-3,64), enquanto, apesar de uma tendência positiva, não foi encontrada uma associação estatisticamente significativa com critérios de Beers ou ambos combinados. Os resultados combinados (RAM e declínio funcional) foram observados em 10,6% dos pacientes, sendo estes resultados significativamente associado com o uso de MPI pelos critérios de Beers e STOPP, respectivamente (OR 1,74 95% CI: 1,06-2,85 ; OR 2,14 95% CI: 1,32-3,47).
O presente estudo mostrou que a prescrição de MPIs é comum em idosos hospitalizados e que a combinação dos critérios de Beers e STOPP identificou um grupo maior de pacientes que receberam MPIs do que um único critério isolado. Os critérios STOPP foram preditores significativos dos eventos hospitalares estudados, o que não foi observado para os critérios de Beers.
Comentários
Maria Cristina G. Passarelli
Médica assistente voluntária do Serviço de Geriatria da Faculdade de Medicina da USP
A manutenção da qualidade da medicação empregada por idosos é uma das grandes preocupações dos geriatras, visto que as complicações associadas ao uso inadequado de medicamentos são bem conhecidas – cabe inclusive enfatizar que a maioria dos eventos adversos a medicamentos é prevenível, e, portanto, o conhecimento prévio dos principais fatores de risco seria de grande importância prática. Dentre esses fatores de risco, destacam-se os medicamentos potencialmente inapropriados para idosos.
Considerando que os dois principais critérios para determinação de MPIs são os de Beers e STOPP, o artigo buscou comparar o uso de ambos em idosos hospitalizados.
Dentre as características comuns dos dois critérios, destaca-se a inclusão de medicamentos considerados potencialmente inapropriados para idosos portadores de determinadas doenças (no caso do Beers, a categoria 2: por exemplo, emprego de antipsicóticos em pacientes com história de quedas e fraturas), enquanto que nos critérios STOPP, organizados de acordo com órgãos e sistemas, os medicamentos são considerados potencialmente inapropriados justamente quando empregados em determinadas situações (por exemplo, uso de aspirina sem história de eventos vasculares, de neurolépticos em pacientes com história de quedas).
Por outro lado, os critérios de Beers têm uma categoria, a 1, que elenca medicamentos ou classes de medicamentos que são considerados potencialmente inapropriados latu sensu, ou seja, independentemente da presença de qualquer doença ou condição, diversamente do STOPP, em que isso não acontece. Já os critérios STOPP consideram duplicidade terapêutica e omissão terapêutica, situações não citadas nos critérios de Beers.
Apesar das diferenças descritas, em determinadas situações os dois critérios poderiam até ser complementares, como por exemplo: o risco do uso de AINH em idosos hipertensos consta apenas dos critérios STOPP, ao passo que o risco da prescrição de medicamentos com propriedades anticolinérgicas é enfatizado exclusivamente nos critérios de Beers. Essa complementaridade é compatível com os resultados descritos neste estudo, que mostrou maior prevalência de MPIs quando se empregaram os dois critérios associados que quando considerados isoladamente.
Um dos principais achados deste trabalho foi a importância da associação entre os critérios STOPP e os desfechos avaliados, o que não aconteceu quando considerados os critérios de Beers. No entanto, o fato deste ser um dos primeiros trabalhos a considerar os critérios de Beers em sua versão 2012 em comparação aos critérios STOPP torna um pouco precoce uma eventual afirmação da superioridade de um em relação ao outro, havendo necessidade de mais estudos e mais evidências futuras. Além de já ter sido mostrado que ambos são complementares, há ainda que se enfatizar que a escolha do emprego dos critérios de Beers ou STOPP pode depender da circunstância, visto que, por exemplo, a aplicação da lista 1 de Beers é muito mais rápida e, portanto, mais fácil, sendo adequada até mesmo para o uso em um pronto-socorro, ou, no caso de seu emprego em pesquisa, para qualquer desenho, ao passo que a lista STOPP seria mais factível para estudos prospectivos.
No entanto, independentemente dos critérios empregados, é importante que no futuro outros aspectos associados ao uso de MPIs sejam contemplados, como a inclusão de interações medicamentosas potencialmente inapropriadas e de listas de medicamentos alternativos aos MPIs (mais seguros). Uma maior frequência de atualizações dos critérios poderá tornar essas ferramentas ainda mais confiáveis.