O processo de desprescrição


vers‰o principal corMaria Cristina Guerra Passarelli

Doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP

Médica Assistente do Serviço de Geriatria da Faculdade de Medicina da USP

Professora da Disciplina de Clínica Geral da Faculdade de Medicina do ABC

Tema: Desprescrição

Estudo: “Reducing Inappropriate Polypharmacy: The Process of Deprescribing”
Fonte: JAMA Inter Med. doi:10.1001/jamainternmed.2015.0324 (Published online March 23.2015
 
Introdução:  Cerca de 30% dos pacientes idosos empregam 5 ou mais medicamentos por dia, o que corresponde a polifarmácia. Depreende-se daí que essa população apresenta alto risco de complicações associadas, como reações adversas a medicamentos, interações medicamentosas e prescrição de medicamentos considerados potencialmente inapropriados. Aproximadamente 50% dos pacientes idosos hospitalizados e institucionalizados recebem um ou mais medicamentos que poderiam ser considerados desnecessários. Estudos observacionais tem demonstrado eventos adversos em no mínimo 15% dos idosos, podendo levar à piora da funcionalidade, descompensação clínica, hospitalização e até mesmo ao óbito, sendo o número de medicamentos empregados o principal fator de risco para complicações. Objetivando a redução deste risco, este artigo tem como foco a desprescrição de medicamentos, definida como o processo sistemático de identificar e suspender medicamentos de benefício questionável ou com potencial para complicações.
Eficácia da desprescrição: Há na literatura considerável evidência do alto risco de eventos adversos associados à polifarmácia em idosos. Desde que se faça avaliação adequada e monitorização criteriosa, a taxa de desprescrição segura de anti-hipertensivos, psicotrópicos e benzodiazepínicos tem  variado de 20 até 100% sem quaisquer complicações. Outro achado descrito é a redução do risco de quedas e a melhora cognitiva e funcional após a suspensão de medicamentos de ação no Sistema Nervoso Central. Em populações de pacientes demenciados, a retirada de antipsicóticos de uso contínuo foi reportada como segura em até 80% dos idosos avaliados. Ainda, em um estudo observacional, a interrupção de agentes anti-hipertensivos mostrou associação com menos eventos cardiovasculares e óbito em um período de 5 anos de seguimento.
O processo de desprescrição: É proposto um protocolo de 5 passos que está resumido na tabela de mesmo nome. Nesse processo, há determinados passos que são essenciais, conforme descrito a seguir.

  1. Definir quais medicamentos devem ser interrompidos

Para que se chegue a esse tipo de conclusão, vale a pena determinados questionamentos, como: por que e quando a medicação foi iniciada? O diagnóstico foi confirmado? A medicação foi prescrita para tratar um evento adverso provocado por outro medicamento (“cascata iatrogênica)? A continuação do medicamento levaria a algum benefício? Há alternativas não-farmacológicas igualmente efetivas?
Exemplos da manutenção desnecessária de medicamentos incluem a prescrição de nitratos a pacientes com episódios antigos de precordialgia rotulados como angina sem comprovação objetiva de doença arterial coronária e a manutenção de inibidores da bomba de protons após a suspensão da terapia com corticóides.

  1. Avaliar se o uso do medicamento é compatível com a circustância de vida naquele determinado momento.

Medicamentos raramente são indicados se não conferirem um benefício significativo ao paciente no contexto de sua vida, citando como exemplos aqueles indivíduos em estágios finais de demência avançada ou carcinomatose, em cuidados paliativos, aos quais é prescrita medicação com efeito a médio ou longo prazo, como bifosfonatos e estatinas.

  1. Determinar se a relação risco-benefício da medicação foi adequadamente avaliada.

Idosos são particularmente vulneráveis aos eventos adversos de determinadas classes de medicamentos, como, principalmente, psicotrópicos, anti-inflamatórios não-hormonais e anticolinérgicos; no entanto, em determinadas situações, nem sempre é facil a suspensão dos mesmos. Para auxiliar a decisão terapêutica, há dois aspectos que devem ser considerados. Primeiro, é necessário ponderar se a medicação cuja suspensão foi cogitada tem como finalidade o controle da doença ou da qualidade de vida, como, por exemplo, o uso de analgésicos em pacientes com osteoartrose severa; tais medicações até poderão ser interrompidas, ou ter suas doses reduzidas, mas o estado clínico do paciente deverá ser rigorosamente monitorado a partir da suspensão, que deverá ser revista, se necessário. Em segundo lugar, há as medicações indicadas para prevenção de um evento mórbido futuro, como, por exemplo, anticoagulantes, bifosfonatos e estatinas; a suspensão de tais fármacos envolve a consideração criteriosa e baseada em evidências dos riscos e dos benefícios daquele determinado tratamento, à luz do tempo necessário para que o benefício se manifeste e da expectativa de vida.
Principais situações em que a desprescrição deve ser considerada
            – surgimento de um novo sintoma ou síndrome clínica, compatíveis com um evento adverso
– estágios finais de doenças terminais, fragilidade extrema, grave prejuízo da funcionalidade
– uso de medicamentos com alto potencial para complicações
– situações em que a interrupção do medicamento não levará a agravamento da doença em questão (por exemplo, a interrupção do alendronato de sódio após 5 anos de tratamento de osteoporose).
Conclusões e Comentários: Conceitos como polifarmácia, uso de medicamentos potencialmente inapropriados para idosos e interações medicamentosas tem sido muito difundidos nos últimos anos; no entanto, todo esse conhecimento deve ser colocado em prática, visando a redução de eventos adversos preveníveis relacionados a medicamentos. Não basta conhecer os riscos se não existe a preocupação com a aplicação desses conceitos, culminando com a desprescrição de determinados medicamentos. Espera-se que esse tema seja mais estudado no futuro, e que a desprescrição em idosos venha a fazer parte das boas práticas do uso de medicamentos nessa população.
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