Por que a geriatria surgiu como especialidade?

Doctor.

Maurício de Miranda Ventura

Médico especialista em geriatria pela Associação Médica Brasileira e Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia; mestre em ciências da saúde pelo Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual; coordenador do Internato em Saúde do Idoso do Curso de Medicina da Universidade Cidade de São Paulo; diretor técnico do Serviço de Geriatria do Hospital do Servidor Público Estadual; membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo

 
Por que a geriatria surgiu como especialidade? Pode parecer ao leigo ou ao profissional de saúde desavisado que o geriatra é o clínico geral do idoso. Ledo engano. A palavra geriatria foi cunhada por Nascher em 1909, derivada do grego – geras tem o significado de velhice, e iatría, cura1.
A geriatria como especialidade médica possui características específicas que a diferenciam da clínica geral. Ela começa a surgir como especialidade quando a médica britânica Marjory Warren, após assumir a chefia de uma unidade de internação no West Middlesex County Hospital, no Reino Unido, em 1935, realiza uma auditoria de centenas de pacientes: o que encontrou foi uma coorte de delirantes e dementes, restritos ao leito, incontinentes graves, e uma outra coorte que tinha potencial de tratamento. Ela desenvolve, então, um sistema de classificação, no qual se identificavam pacientes elegíveis para reabilitação e que poderiam voltar a viver na comunidade e outros que teriam indicação de internação no que hoje chamamos de instituição de longa permanência (ILPI). Marjory foi bem-sucedida em sua abordagem, principalmente na recuperação de pacientes vítimas de acidente vascular encefálico.
Isso foi uma mudança de paradigma na gestão desses pacientes que haviam sido deixados para definhar2. Essa unidade de internação foi a primeira reconhecida como especializada no atendimento ao idoso naquele país. Marjory promoveu a reabilitação multidisciplinar e a apreciação holística de pacientes idosos e enfatizou os problemas econômicos, sociais e morais associados ao seu cuidado. Ela estava particularmente preocupada com a reabilitação de hemiplégicos e amputados, medicina preventiva, responsabilidade do paciente e enfermagem domiciliar. Em seu trabalho, ressaltou a necessidade de uma ligação estreita entre geriatria e clínica geral e suas diretrizes. Seus métodos inovadores e sua colaboração junto a comissões e ao governo britânico, além de sua força pessoal, foram fundamentais para a evolução da geriatria moderna e a medicina de reabilitação britânicas.
A médica lançou, assim, os pilares da nascente especialidade: avaliação global do paciente, interdisciplinaridade, reabilitação para a manutenção funcional do idoso. Tal foi a importância de seu trabalho que, em 1947, Marjory participou da fundação da Medical Society for the Care of the Elderly, hoje British Geriatric Society. Como consequência, o National Health Service do Reino Unido reconheceu a geriatria como especialidade médica nos anos 1950.
Marjory promoveu a importância do atendimento da equipe multidisciplinar, a mobilização precoce e o engajamento ativo do idoso em suas atividades diárias, e a avaliação global, que incluiu os problemas sociais e funcionais do paciente, além dos clínicos. Ela defendia a necessidade de lidar com as necessidades complexas pertinentes a essa faixa etária, geralmente enfermos portadores de doenças crônicas, em um sistema integrado. Observou ainda que as necessidades dos idosos situam-se entre dois polos: em um deles o indivíduo encontra-se demasiadamente enfermo e necessita de internação em uma unidade hospitalar; no outro, ele é totalmente independente e autônomo, capaz de viver na comunidade. Entre essas duas pontas, o idoso não está suficientemente doente para manter-se internado, mas ainda permanece deficiente demais ou frágil para voltar à comunidade3. Na época, ela publicou os principais objetivos do tratamento do idoso: “prevenir doenças, sempre que possível”, “reduzir as complicações clínicas das doenças ao mínimo”, “obter e manter o máximo da autonomia e independência do paciente”, “ensinar o paciente a adaptar-se às suas disfunções”4.
Entretanto, trilhar esse caminho não foi fácil. A médica deparava frequentemente com colegas que não entendiam a importância de cuidar de um grupo de pacientes tão negligenciado. Comentava-se à época: “Geriatras são membros de uma especialidade de segunda categoria, cuidando de pacientes de terceira categoria, em ambientes de quarta categoria”3. A despeito disso, em função do envelhecimento populacional, considerou-se que o custo de tratamento dessa população seria exorbitante caso fosse mantido o sistema de saúde vigente. Assim sendo, o National Health Service passou a encarar com interesse o geriatra e os profissionais treinados na área, considerando-os especialistas que poderiam trazer soluções para racionalização dos custos de tratamento dessa população. Suas ideias e seu sistema de classificação, agora usuais, tornaram-se inovação no cuidado de idosos, antes abandonados para definhar.
 
Peculiaridades do envelhecimento
O envelhecimento tem inúmeras peculiaridades: a doença física pode se apresentar como transtorno mental de início agudo, marcado por confusão mental e déficit de atenção (delirium), em geral um dos primeiros sinais das enfermidades mais comuns; as capacidades funcionais e fisiológicas estão diminuídas, como a depuração de creatinina; as reações adversas a medicamentos são mais pronunciadas e prováveis, principalmente devido às múltiplas morbidades e à polifarmácia; os sinais e os sintomas típicos de doenças podem estar ocultos ou ser muito leves (ex.: a febre pode ser mínima ou ausente durante uma pneumonia); múltiplos problemas orgânicos, psicológicos e sociais estão presentes.
Com o aprimoramento da especialidade, outras questões começaram a surgir. Vale destacar os cuidados de final de vida, principalmente para pacientes portadores de doenças crônicas e degenerativas, como demências, sequelados de acidentes vasculares encefálicos ou doença de Parkinson, e insuficiência cardíaca e doença pulmonar obstrutiva crônica. Assim, começa-se a discutir quando as diretrizes e os protocolos deixam de ser benéficos para determinados pacientes e passa-se a focar o tratamento diretamente para os sintomas. É o caso, por exemplo, de analisar o benefício da administração de estatina e antiagregante plaquetário a um paciente que, apesar de ser portador de diabetes mellitus e hipercolesterolemia5, já é sequelado de acidente vascular encefálico ou de uma demência avançada, totalmente dependente para suas atividades básicas e restrito ao leito. Não é por outro motivo que o objetivo no controle de diabetes em idosos multimórbidos e  fragilizados passa para acima de 7% ao invés dos inferiores a 6,5% em pacientes hígidos5.
Tem início assim um casamento que deve se tornar longevo: o da geriatria com os cuidados paliativos. A lógica de que é preferível acrescentar qualidade aos anos que ainda restam à vida do que simplesmente acrescentar anos às custas do comprometimento de sua qualidade passa a ser muito cara aos geriatras. Em consequência de tudo isso, passa-se também a questionar se a prescrição de determinados medicamentos é, de fato, benéfica ao paciente ou se é apenas mais um a aumentar o risco de efeitos colaterais. Surge assim uma palavra até então inédita nas escolas de medicina: a desprescrição.
O primeiro passo da desprescrição é verificar quais os medicamentos usados pelo paciente – todos eles, incluindo aqueles que não foram prescritos pelos médicos, mas por vizinhos e parentes, como é comum em nosso meio. Não é tarefa fácil, pois os pacientes frequentemente esquecem seus nomes, suas dosagens e o modo de tomar. Nesse momento, é importante solicitar que o paciente traga todos os medicamentos no momento da consulta.
O segundo passo é analisar o risco do uso de cada uma dessas drogas, isoladas ou em associação com as demais, em relação ao benefício de sua prescrição. Um exemplo comum é o uso concomitante de amiodarona e betabloqueador. O terceiro passo é questionar se esse medicamento está trazendo benefício ao tratamento. Os objetivos que justificam sua administração estão sendo atingidos? Caso a resposta seja negativa, propõe-se sua suspensão: primeiramente daqueles que mostram benefícios discutíveis, depois dos que apresentam potencial risco ao paciente e, por fim, daqueles que comprovadamente não têm nenhuma eficácia para o tratamento. É importante destacar que o ato de prescrever – apenas pelo ato de prescrever – qualquer tipo de droga em função de uma queixa pode ser um grande erro. Por exemplo, o uso de benzodiazepínicos para idosos com queixa de insônia, sem que se questione sua higiene do sono e sem que se identifiquem seus fatores causais, como depressão ou apneia do sono, pode desencadear problemas como queixas de esquecimento e aumentar o risco de quedas. Caso seja aceita a proposta, cabe ao médico reavaliar se a suspensão do medicamento não trouxe maiores consequências à saúde do paciente.
 
Síndromes geriátricas
Além de todas essas questões, o envelhecimento populacional traz à tona duas síndromes que se caracterizam por ser eminentemente geriátricas: a fragilidade e as quedas. Uma dos aspectos mais importantes do envelhecimento é a sarcopenia, que é a perda de massa muscular relacionada com o avançar da idade e que está presente no idoso, independentemente da prática de atividade física. A síndrome de fragilidade (SD) nada mais é do que a perda de massa muscular, que, num processo mais acentuado em relação ao envelhecimento normal, resulta num comprometimento funcional de nosso paciente.
Aqui nos deparamos novamente com a necessidade de avaliação de como o idoso se relaciona com o meio onde vive e com ele mesmo. O surgimento da SD está baseado no tripé sarcopenia/disfunção imunológica/desregulação neuroendócrina. Exemplos corriqueiros são encontrados quando avaliamos o paciente assintomático: elevação da proteína C-reativa ou do D-dímero, intolerância a glicose e hipotireoidismo subclínico. Fazemos o diagnóstico clínico de um idoso frágil baseados nos critérios de Fried e colaboradores6: perda de peso inexplicável, diminuição de velocidade de marcha, diminuição de força muscular, diminuição das atividades, autorrelato de cansaço. A presença de três desses sintomas é suficiente para classificar o idoso como frágil.
As causas da fragilidade são multifatoriais e envolvem aspectos emocionais, psicológicos, sociais, nutricionais e clínicos – daí a importância da multidisciplinaridade na avaliação do idoso. A saúde bucal inadequada, com dentes em mau estado ou próteses dentárias mal-ajustadas, pode ser o começo da desnutrição que caracteriza essa população. A presença de um déficit auditivo importante leva o idoso ao isolamento social, porque ele não consegue participar de uma conversação. Um paciente que mora só não terá vontade de preparar uma refeição adequada, pois lhe falta o estímulo da convivência com outras pessoas. Sintomas depressivos diminuem o estímulo para a convivência social e a atividade física. E, obviamente, problemas clínicos, como insuficiência cardíaca mal controlada, síndrome demencial e sequelas de doenças neurológicas, levam o idoso a diminuir suas atividades, comprometendo o condicionamento físico e acentuando a perda de massa muscular. O diagnóstico precoce e o tratamento são fundamentais, pois se sabe que o idoso frágil está mais sujeito à morbidade, tem maior risco de institucionalização e comprometimento funcional, e também de morrer. Assim, são necessárias a identificação precoce e a abordagem interdisciplinar para a reversão dessa condição clínica.
Outra síndrome bastante típica do envelhecimento são as quedas. Definida como um deslocamento não intencional do corpo a um nível inferior do previamente situado, não importa se o paciente caiu sentado no sofá ou se ele rolou as escadas. Definimos como caidor todo idoso que apresenta ao menos duas quedas durante um período de seis meses. Sua presença deve ser ativamente investigada, pois o idoso que cai tende a esconder o fato por medo de ter sua liberdade restrita por seus familiares. O idoso caidor tem um risco maior de comprometimento funcional, pois o medo de cair pode limitar a realização de suas atividades usuais e seu convívio social. Além disso, há aumento de sua morbidade pelo risco de traumas, tendo como consequências máximas a institucionalização e até a morte.
As causas das quedas do idoso também são múltiplas, desde as questões próprias do envelhecimento – como a perda de força muscular levando a alterações na marcha, diminuição de seus reflexos, alteração do ponto de equilíbrio por deformidade na coluna vertebral – até o uso de vários medicamentos, como os anti-hipertensivos, os utilizados para hiperplasia prostática benigna, os ansiolíticos, os antidepressivos: quanto maior a polifarmácia, maior o risco de o idoso cair.
As condições ambientais onde vive o paciente também podem aumentar o risco de quedas, tais como ruas esburacadas, ambientes mal iluminados, escadas sem corrimão e sem sinalização no primeiro degrau, tapetes e mesas de centro, ambientes naturalmente lisos e escorregadios, como quintal e banheiros. Somam-se a esses fatores comportamentos de risco do próprio paciente, como a utilização de calçados inadequados e subir em banquetas para alcançar objetos colocados em prateleiras muito elevadas.
A principal forma de abordar as quedas é a prevenção. A avaliação clínica com o objetivo de identificar doenças não diagnosticadas ou descompensadas, o controle do uso de medicamentos, a reabilitação física de pacientes fragilizados, o uso de instrumentos de auxílio à marcha, quando indicados, a educação e a adaptação do ambiente às limitações do paciente são medidas necessárias para a prevenção das quedas e a diminuição dos riscos de morbimortalidade dessa população.
Por fim, compete ao geriatra uma compreensão holística do paciente, não somente seus problemas clínicos, mas emocionais, sociais e culturais, pois o mecanismo de doença e sua consequente limitação funcional passam por todos esses pontos. O geriatra não pode jamais prescindir das diretrizes e dos protocolos na escolha do tratamento de seu paciente, mas deve pesar os riscos e benefícios de cada um deles, sempre visando o melhor em qualidade de vida. Um bom geriatra é sempre um bom clínico, mas um bom clínico não é necessariamente um bom geriatra.
 
Referências bibliográficas:

  1. Thewlis MW, Wakefield, R. I. Care of the Aged. 1942;120(10):749-752
  2. John Grimley Evans, Warren, Marjory Winsome (1897-1960), Oxford Dictionary of National Biography, Oxford University Press, 2004; online edn, May 2010
  3. John, Philip D. and Hogan, David B., The Relevance of Marjory Warren’s Writings Today, The Gerontologist. 2014 Feb;54(1):21-9
  4. Warren M. W. (1951a). Geriatrics. In Tidy Sir Henry, Short A. Rendle (Eds.), The medical annual (pp. 108–112). Bristol: John Wright & Sons.
  5. Lee SJ, Kim CM. Individualizing Prevention for Older Adults. J Am Geriatr Soc.66(2):229-234.
  6. Fried, L P;  Tangen, C M;  Walston, J;  Newman, A B;  Hirsch, C;  Gottdiener, J;  Seeman, T;  Tracy, R;  Kop, W J;  Burke, G;  McBurnie, M A. Frailty in older adults: evidence for a phenotype. J Gerontol A Biol Sci Med Sci; 56(3): M146-56, 2001 Mar.